A luta indígena nos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro
Quando Jair Bolsonaro se tornou presidente do Brasil em 1º de janeiro, os povos indígenas do país e seus aliados em todo o mundo se prepararam para o pior. Ele prometeu que não haveria nenhum centímetro a mais de terras indígenas demarcadas sob sua liderança. Ele anunciou sua intenção de integrar os povos indígenas à força “como o exército, que fez um ótimo trabalho”, mas achou uma “pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios”.
Há duas lições importantes que podemos tirar dos primeiros 100 dias da Presidência do Bolsonaro. A primeira é que os receios eram bem fundamentados, e essa administração racista está lançando abertamente um ataque sem precedentes contra os povos indígenas, com o objetivo explícito de destruí-los como povos, assimilando-os à força e saqueando suas terras.
A segunda é que ainda há esperança que esse ataque genocida possa ser interrompido. As instituições brasileiras, tribunais e o Congresso, podem fornecer amparo legal e prático se quiserem, e os próprios povos indígenas estão se organizando e se mobilizando contra esse ataque em escala local e nacional, e já conquistaram vitórias notáveis.
No início deste ano, os povos indígenas do Brasil lideraram o maior protesto internacional pelos direito indígenas da história. Os apoiadores da Survival International se juntaram a eles levantando vozes e cartazes em todo o mundo.
Sonia Guajajara, líder indígena e candidata a vice-presidência nas eleições de 2018, disse: “Vamos resistir. Se somos os primeiros a sermos atacados, seremos os primeiros a reagir.” E Rosilene Guajajara disse: “Estamos resistindo 518 anos. Não vamos parar de lutar agora. Vamos unir todas as nossas forças e vamos vencer.”
A importância, tanto simbólica quanto prática, de lutar ao lado dos povos indígenas não pode ser subestimada. Além de fornecer apoio significativo às pessoas envolvidas nos protestos, os legisladores, juízes, prefeitos, congressistas e outros, não podem ignorar as vozes levantadas em todo o mundo diante das injustiças que ocorrem.
Em seu primeiro dia no cargo, Bolsonaro transferiu a responsabilidade pela demarcação dos territórios indígenas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para o Ministério da Agricultura. Esta mudança teve claramente a intenção de impedir qualquer proteção adicional às terras indígenas, o que de fato ocorreu.
A nova ministra da Agricultura do governo Bolsonaro é Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, ex-chefe da bancada ruralista, que aceitou uma doação de campanha de um fazendeiro anteriormente acusado de ordenar o assassinato de um líder indígena. O funcionário do departamento encarregado das questões fundiárias é Nabhan Garcia, o ex-presidente da União Democrática Ruralista que lutou contra as demarcações de terras indígenas por décadas.
Mas isso ainda não está definido em lei. O decreto tem vigência de 120 dias e deve ser analisado pelo congresso. Além da legislação, o judiciário pode desempenhar um papel fundamental de moderação dos excessos de Bolsonaro. O Partido Socialista Brasileiro (PSB) entrou com um processo no Supremo Tribunal Federal no final de janeiro, desafiando a decisão de Bolsonaro de transferir a competência de demarcação das terras indígenas ao Ministério da Agricultura. O tribunal ainda tem que decidir sobre este caso em particular, mas os juízes do Brasil mostraram que estão dispostos a enfrentar o presidente.
O governo declarou a construção de uma linha de energia como sendo de “interesse da defesa nacional” para atropelar os direitos constitucionais dos povos indígenas. O povo Waimiri Atroari se opõe a sua construção que se estenderá por mais de 100 quilômetros em suas terras sem o seu consentimento, e, apesar de transportar eletricidade para cidades como Manaus, não fornecerá energia para aldeias indígenas dentro da reserva. O governo anunciou que o projeto começará em 30 de junho. Os indígenas estão lutando contra a decisão.
Bolsonaro deixa claro que “o Brasil nada deve ao mundo no tocante da preservação do meio ambiente” e mudou o procedimento de licenciamento ambiental para facilitar a construção em terras indígenas. Novos mega projetos de infraestrutura foram anunciados, incluindo uma barragem no rio Trombetas, uma ponte sob o rio Amazonas e uma extensão de 300 quilômetros de estrada na floresta tropical do rio Amazonas até a fronteira com o Suriname.
O governo também ameaçou retirar o Brasil da lei internacional sobre os direitos dos povos indígenas, conhecida como Convenção 169 da OIT. Isso enfraqueceria ainda mais os direitos indígenas e excluiria importantes análises internacionais e independentes. O Brasil ratificou a Convenção 169 da OIT em 2002 e, desde então, ela têm sido usada em sentenças por juízes e promotores públicos que tem a obrigação constitucional de processar o Estado quando este viola direitos indígenas.
Mas os invasores ilegais de terras não esperam a legislação ser aprovada ou a decisão dos juízes, e pelo menos 14 territórios indígenas estão atualmente sob ataque. Os madeireiros, garimpeiros, petroleiros e pecuaristas agora, com razão, acham que o presidente está do lado deles. Durante a campanha presidencial, o desmatamento aumentou quase 50%, e as invasões de terras aumentaram 150% depois de eleito em outubro do ano passado.
O Brasil é o país mais letal do mundo para os defensores do meio ambiente, mas a violência dirigida aos povos indígenas não pode ser explicada simplesmente como uma batalha pelos recursos: em muitos casos, está claro que são crimes de ódio. Na noite da vitória eleitoral de Bolsonaro, por exemplo, um posto de saúde e uma escola foram incendiados na terra indígena Pankararu, no nordeste do país.
Na Survival International, continuamos recebendo dezenas de relatos de todo o Brasil do que às vezes parece ser uma guerra aberta contra as comunidades indígenas. Em uma tentativa de sufocar as ONGs que se opõem a seus interesses, Bolsonaro emitiu um decreto que permite às autoridades governamentais “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e ações dos organismos internacionais e das organizações não-governamentais no território nacional”.
Houve ameaças de expulsão de grupos ambientalistas e Ricardo Salles, o novo ministro do Meio Ambiente, tentou suspender todas as parcerias do governo com ONGs no país por três meses. Ele acredita que as áreas protegidas da Amazônia sustentam o “desenvolvimento” e defende a agricultura comercial e a mineração em reservas indígenas, incluindo aquelas onde vivem povos indígenas isolados, o que quase certamente os destruiria.
O governo lançou até mesmo um ataque contra a saúde indígena. Ele propôs acabar com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), que conta com 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), e foi criada em colaboração com as comunidades e adaptada às suas necessidades específicas. Em vez disso, os pacientes indígenas teriam acesso aos mesmos serviços municipais (já inadequados e sobrecarregados) que qualquer outra pessoa do município. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse: “Para os 600 mil indígenas, os recursos que o país coloca – acho que poucos países do mundo contribuem para isso”.
A proposta provocou indignação e protestos de povos indígenas de todo o país. Temendo por suas vidas e especialmente pelas vidas de seus filhos e idosos, eles se preocupavam com a falta de provisão de línguas indígenas e com o não atendimento de suas necessidades pois, o sistema foi projetado por e para pessoas vivendo estilos de vida muito diferentes das suas. Do Paraná a Rondônia, de Pernambuco a Mato Grosso do Sul, centenas de indígenas ocuparam prédios públicos e pararam rodovias em apoio à permanência da SESAI. Poucos dias depois, o ministro recuou e fez garantias públicas de que o sistema de saúde indígena não será abolido.
Esta vitória é encorajadora e importante, mas tudo isso está longe de terminar: afinal, são apenas os primeiros 100 dias.
Agora é Abril Indígena: os povos indígenas estão organizando atos ao redor do país, e milhares de indígenas se reunirão em Brasília para protestar contra as políticas do governo, destacar suas preocupações e tornar a diversidade cultural e a riqueza do país visível para todos os brasileiros. Neste ano, há ainda mais urgência.
Sydney Possuelo, ex-diretor da FUNAI e defensor dos direitos dos povos indígenas, disse à Reuters: “A situação dos povos indígenas do Brasil nunca foi boa. Mas durante 42 anos de trabalho na Amazônia, esse é o momento mais perigoso que já vi”. E um porta-voz dos Guarani, David Karai Popygua, disse: “É como se nós, agora, fôssemos um alvo do governo a ser exterminado.” Ele está certo. O apoio declarado do presidente a ditadura, tortura, repressão brutal, violência sancionada pelo Estado e assassinato extrajudicial, levanta a terrível perspectiva de que o que vimos até agora pode ser, em mais de um sentido, apenas o começo.