Povos indígenas isolados: Contato, respeito e isolamento
Sydney Possuelo trabalhou durante anos como sertanista da Fundação Nacional do Índio, buscando contato com indígenas isolados. O que ele encontrou o levou a lutar pelo direito à terra e ao isolamento voluntário desses povos. Confira abaixo seu depoimento.
O passar dos anos embaraça a memória e os detalhes se perdem pelo tempo. Já não sei com precisão se o ano era 71 ou 72. A missão era subir o Rio Branco em Rondônia e retirar os indígenas Jaboti e Makurap que se encontravam escravizados no seringal, dentro deste rio. Subi até onde se podia navegar. Percorri muitas estradas de seringa até que, em determinado momento, os indígenas que me acompanhavam se recusavam a prosseguir. Falavam dos “brabos” cujo território estávamos adentrando.
Eram muitos os vestígios da existência invisível dos “brabos”: “tapiris”, “rabos-de-jacu”, esteiras, restos de fogueiras, pontas de flechas, árvores marcadas, tocaias; vestígios que eu já conhecia, instruído que fui durante os anos vividos com os povos Xinguanos, notadamente os Kaiabi e Metuktire.
Mas algo novo despertou minha atenção: estrepes feitos de taquara, muito afiados, eram implantados no chão, quase sempre após árvores caídas, ou nas descidas íngremes, quando todo o peso do corpo se apoia em um só pé. Muitos estrepes [ferramenta feita de espinhos] juntos, disfarçados por folhas formavam uma arma perigosa para o desavisado. Fiquei impressionado pela ação do que não era mais que um punhado de homens nus, escudados em elementares meios de defesa, lutavam bravamente contra o avanço da nossa sociedade para manter a terra que sempre fora seu espaço vital, a sua casa, o seu lar. Aquela imagem permaneceu na minha mente e inundou-me de fortes emoções.
As décadas de 70, 80 e parte de 90, foram utilizadas pelos governos militares para a implantação de uma rede rodoviária que, cortando a Amazônia tinha, entre outros, o objetivo de integrar esses grandes espaços, até então considerados devolutos e vazios. Na época, como sertanista, fui designado para desbravar regiões de selva quase desconhecidas, chefiando expedições com o objetivo de “pacificar as tribos arredias”. Percorri a Amazônia enfrentando junto com indígenas situações conflituosas e lutas, não raro sangrentas, que travavam contra a usurpação de suas terras. Os conflitos ocorriam ao longo das estradas, na construção de hidroelétricas, nos projetos de colonização, nas regiões de pesquisa de petróleo e no extrativismo em grande escala, desordenado e predador.
A cada contato, vivia situações de grande dificuldade. Quando adoeciam, os indígenas internavam-se na selva em busca de seus medicamentos tradicionais que não surtiam efeito contra vírus e muitas vezes por lá morriam. A maneira invasiva e às vezes agressiva da nossa medicina, fazia com que, o aplicar de uma injeção, fosse violentamente recusado até mesmo com ameaça de morte. Aprendi o que o sarampo representa para esses indígenas recém-contatados — a aniquilação de seu povo. Eu vi indígenas perdendo sua saúde, perdendo sua autonomia. Eles perderam sua identidade, sua língua e sua terra.
Comecei a perceber que o contato com o mundo exterior não é do interesse dos isolados. Comecei a me perguntar, que tipo de desordem estamos criando? Na época, eu realmente acreditava que estávamos dizendo: “venha e compartilhe um mundo tecnologicamente mais avançado!” Mas tudo isso é uma mentira. Estávamos invadindo o espaço deles. Nossa sociedade é feita para nós, não para eles. O arquiteto branco não projetou o espaço para o indígena isolado.
No primeiro contato, você começa a destruir o universo deles. Eles não podem avaliar as ilusões do nosso mundo. Tenho para mim que só quem vivenciou sabe, com que velocidade destruímos o conjunto de valores que os mantinha vivos, unidos e diferenciados.
Lentamente as experiências provocavam dúvidas e incertezas, principalmente porque, para mudar a situação, eu teria que alterar a política que fora estabelecida por um dos nossos maiores heróis, e o maior expoente nacional defensor dos povos indígenas: Candido Mariano da Silva Rondon. Como se postar contra sua política?
Iniciei um trabalho junto a vários presidentes da Funai, tentando esclarecer que era necessária uma mudança de filosofia que pudesse, efetivamente, defender os povos isolados, demarcar suas terras, proteger seu meio ambiente e deixá-los viver suas vidas. Durante vários anos, na sucessão vertiginosa de presidentes da Funai, eu buscava convencer cada um que entrava da importância de mudanças. Ninguém me ouvia até que, em 1987, pela primeira vez, um presidente escutou e atendeu minhas propostas.
Minhas crenças permanecem fortes. Quando um povo está isolado e em paz; quando nada os ameaça, por que precisamos entrar em contato com eles? Só porque sabemos que eles existem? Muitas vezes, eles deixam claro que querem manter seu isolamento; portanto, o primeiro direito dos povos isolados é permitir que eles permaneçam isolados. Nossa sociedade que pode criar aviões e foguetes precisa desenvolver ideais que respeitem verdadeiramente os indígenas isolados. O mundo concederá a esses grupos seu direito à liberdade? Podemos impedir que nossa vasta parafernália de tecnologia – tratores, comunicação, transporte – destrua seus ambientes? Quando houver contato no futuro, seremos mais fraternos, mais humanos e menos violentos?