As palavras de Davi Kopenawa Yanomami
Davi Kopenawa Yanomami é um xamã do povo Yanomami. Ele é o único membro de seu povo a escrever um livro, chamado A Queda do Céu. Os Yanomami vivem na Amazônia, no Brasil e na Venezuela, na maior área de floresta sob controle indígena do mundo.
Palavras de um xamã Yanomami
Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e forte. O mesmo ocorre com as palavras dos espíritos xapiri, que também são muito antigas. Mas voltam a ser novas sempre que eles vêm de novo dançar para um jovem xamã, e assim tem sido há muito tempo, sem fim. Nossos xamãs mais antigos nos dizem: “Agora é sua vez de responder ao chamado dos espíritos. Se pararem de fazê-lo, ficarão ignorantes. Perderão seu pensamento e por mais que tentem chamar a imagem de Teosi para arrancar seus filhos dos seres maléficos, não conseguirão”.
As palavras de Omama e as dos xapiri são as que prefiro. Essas são minhas de verdade. Nunca irei rejeitá-las. O pensamento dos brancos é outro. Sua memória é engenhosa, mas está enredada em palavras esfumaçadas e obscuras. O caminho de sua mente costuma ser tortuoso e espinhoso. Eles não conhecem de fato as coisas da floresta. Só contemplam sem descanso as peles de papel em que desenharam suas próprias palavras. Se não seguirem seu traçado, seu pensamento perde o rumo. Enche-se de esquecimento e eles ficam muito ignorantes. Seus dizeres são diferentes dos nossos. Nossos antepassados não possuíam peles de imagens e nelas não inscreveram leis. Suas únicas palavras eram as que pronunciavam suas bocas e eles não as desenhavam, de modo que elas jamais se distanciavam deles. Por isso os brancos as desconhecem desde sempre.
Eu não aprendi a pensar as coisas da floresta fixando os olhos em peles de papel. Vi-as de verdade, bebendo o sopro de vida de meus antigos com o pó de yãkoana que me deram. Foi desse modo que me transmitiram também o sopro dos espíritos que agora multiplicam minhas palavras e estendem meu pensamento em todas as direções. Não sou um ancião e ainda sei pouco. Entretanto, para que minhas palavras sejam ouvidas longe da floresta, fiz com que fossem desenhadas na língua dos brancos. Talvez assim eles afinal as entendam, e depois deles seus filhos, e mais tarde ainda, os filhos de seus filhos. Desse modo, suas ideias a nosso respeito deixarão de ser tão sombrias e distorcidas e talvez até percam a vontade de nos destruir. Se isso ocorrer, os nossos não mais morrerão em silêncio, ignorados por todos, como jabutis escondidos no chão da floresta.
A imagem de Omama disse a nossos antepassados: “Vocês viverão nesta floresta que criei. Comam os frutos de suas árvores e cacem seus animais. Abram roças para plantar bananeiras, mandioca e cana-de-açúcar. Deem grandes festas reahu! Convidem uns aos outros, de diferentes casas, cantem e ofereçam muito alimento aos seus convidados!”. Não disse a eles: “Abandonem a floresta e entreguem-na aos brancos para que a desmatem, escavem seu solo e sujem seus rios!”. Por isso quero mandar minhas palavras para longe. Elas vêm dos espíritos que me acompanham, não são imitações de peles de imagens que olhei. Estão bem fundo em mim. Faz muito tempo que Omama e nossos ancestrais as depositaram em nosso pensamento e desde então nós as temos guardado. Elas não podem acabar. Se as escutarem com atenção, talvez os brancos parem de achar que somos estúpidos. Talvez compreendam que é seu próprio pensamento que é confuso e obscuro, pois na cidade ouvem apenas o ruído de seus aviões, carros, rádios, televisores e máquinas. Por isso suas ideias costumam ser obstruídas e enfumaçadas. Eles dormem sem sonhos, como machados largados no chão de uma casa. Enquanto isso, no silêncio da floresta, nós, xamãs, bebemos o pó das árvores yãkoana hi, que é o alimento dos xapiri. Estes então levam nossa imagem para o tempo do sonho. Por isso somos capazes de ouvir seus cantos e contemplar suas danças de apresentação enquanto dormimos. Essa é a nossa escola, onde aprendemos as coisas de verdade.
Omama não nos deu nenhum livro mostrando os desenhos das palavras de Teosi, como os dos brancos. Fixou suas palavras dentro de nós. Mas, para que os brancos as possam escutar, é preciso que sejam desenhadas como as suas. Se não for assim, seu pensamento permanece oco. Quando essas antigas palavras apenas saem de nossas bocas, eles não as entendem direito e as esquecem logo. Uma vez coladas no papel, permanecerão tão presentes para eles quanto os desenhos das palavras de Teosi, que não param de olhar. Isso talvez os faça dizer: “É verdade, os Yanomami não existem à toa. Não caíram do céu. Foi Omama que os criou para viverem na floresta”. Por enquanto, os brancos continuam mentindo a nosso respeito, dizendo: “Os Yanomami são ferozes. Só pensam em fazer guerra e roubar mulheres. São perigosos!”. Tais palavras são nossas inimigas e nós as odiamos. Se fôssemos ferozes de verdade, forasteiro algum jamais teria vivido entre nós. Ao contrário, tratamos com amizade os que vieram à nossa terra para nos visitar. Moraram em nossas casas e comeram nossa comida. Essas palavras torcidas são mentiras de maus convidados. Ao retornarem a suas casas, poderiam ter dito a todos, ao contrário: “Os Yanomami amarraram minha rede em sua casa e com generosidade me ofereceram sua comida. Que vivam na floresta como seus antepassados antes deles! Que seus filhos sejam muitos e sempre saudáveis! Que continuem caçando, dando festas reahu e fazendo dançar seus espíritos xapiri!”.
Em vez disso, nossas palavras foram enredadas numa língua de fantasma, cujos desenhos tortos se espalharam entre os brancos, por toda parte. E acabaram voltando para nós. Foi doloroso e revoltante para nós, pois tornaram-se palavras de ignorância. Não queremos mais ouvir essas velhas palavras a nosso respeito. Pertencem aos maus pensamentos dos brancos. Tampouco quero ouvi-los repetir: “As palavras dos Yanomami para defender a floresta são mentira. Ela logo estará vazia. Eles são poucos e vão todos virar brancos!”. Por isso quero fazer com que essas palavras ruins sejam esquecidas e substituídas pelas minhas, que são novas e direitas. Ao escutá-las, os brancos não poderão mais pensar que somos como seres maléficos ou caça na floresta.
Quando seus olhares acompanharem o traçado de minhas palavras, vocês saberão que estamos ainda vivos, pois a imagem de Omama nos protege. Então, poderão pensar: “Eis aí belas palavras! Os Yanomami continuam vivendo na floresta como seus antepassados. Residem em grandes malocas, onde dormem em suas redes, perto de suas fogueiras. Comem banana e mandioca de suas roças. Flecham os animais na floresta e pescam peixes em seus rios. Preferem sua comida aos alimentos mofados dos brancos, fechados em caixinhas de ferro ou estojos de plástico. Convidam uns aos outros, de casas diferentes, para dançar durante suas grandes festas reahu. Fazem descer seus espíritos xapiri. Falam sua própria língua. Seus cabelos e olhos continuam semelhantes aos de Omama. Não viraram brancos. Continuam vivendo nas mesmas terras que, do alto de nossos aviões, parecem vazias e silenciosas. Nossos pais já causaram a morte de muitos de seus maiores. Não devemos continuar nesse mau caminho”.
Longe de nossa floresta, há muitos outros povos além de nós. Contudo, nenhum deles tem um nome semelhante ao nosso. Por isso devemos continuar vivendo na terra em que Omama nos deixou no primeiro tempo. Somos seus filhos e genros. Mantemos o nome que nos deu. Desde que nos encontraram, os brancos não param de nos perguntar: “Quem são vocês? De onde vêm? Como se chamam?”. Querem saber o que nosso nome, Yanomami, significa. Por que tamanha insistência? Alegam que é para pensar direito. Achamos que, ao contrário, isso é ruim para nós. Que resposta lhes daremos? Queremos proteger nosso nome. Não nos agrada repeti-lo a torto e a direito. Seria maltratar a imagem de Omama. Não é assim que falamos. Por isso, ninguém quer responder às suas perguntas.
Somos habitantes da floresta. Nossos ancestrais habitavam as nascentes dos rios muito antes de os meus pais nascerem, e muito antes do nascimento dos antepassados dos brancos. Antigamente, éramos realmente muitos e nossas casas eram muito grandes. Depois, muitos dos nossos morreram quando chegaram esses forasteiros com suas fumaças de epidemia e suas espingardas. Ficamos tristes, e sentimos a raiva do luto demasiadas vezes no passado. Às vezes até tememos que os brancos queiram acabar conosco. Porém, a despeito de tudo isso, depois de chorar muito e de pôr as cinzas de nossos mortos em esquecimento, podemos ainda viver felizes. Sabemos que os mortos vão se juntar aos fantasmas de nossos antepassados nas costas do céu, onde a caça é abundante e as festas não acabam. Por isso, apesar de todos esses lutos e prantos, nossos pensamentos acabam se acalmando. Somos capazes de caçar e de trabalhar de novo em nossas roças. Podemos recomeçar a viajar pela floresta e a fazer amizade com as pessoas de outras casas. Recomeçamos a rir com nossos filhos, a cantar em nossas festas reahu e a fazer dançar os nossos espíritos xapiri. Sabemos que eles permanecem ao nosso lado na floresta e continuam mantendo o céu no lugar.