Refugiados em nosso próprio país
Damiana Cavanha, cacique de uma comunidade Guarani Kaiowá, liderou sua comunidade em uma retomada de suas terras ancestrais. Aqui contamos sua história trágica e inspiradora, com fotografias de Paul Patrick Borhaug.
Às margens de uma estrada no Mato Grosso do Sul, Damiana Cavanha, com uma maraca de penas azuis feita de cabaça de abóbora na mão, começa a cantar. O chão está repleto de lixo; atrás dela há barracos construídos de telhas de metal, mantas de plástico e lona.
Caminhões passam fazendo barulho, sufocando suas invocações.
© Fiona Watson/Survival
Damiana é do povo indígena Guarani Kaiowá. Acredita-se que esse foi um dos primeiros povos contatados pelos europeus quando chegaram na América do Sul.
© Paul Enkelaar
No passado, os Guarani ocupavam uma área de 350.000 kms quadrados de florestas e planíces, onde caçavam livremente em suas terras e plantavam mandioca e milho em suas roças.
A terra é tudo para os Guarani: ela provê o seu sustento e modela sua linguagem e crenças. É onde seus ancestrais estão enterrados e também a herança para seus filhos. Nos últimos 100 anos, no entanto, tiveram quase todas suas florestas roubadas e transformadas em vastas áreas de pastagem, e plantações de soja e cana de açúcar.
© Survival
Fazendeiros expulsaram Damiana e sua família de suas terras ancestrais.
Agora, a comunidade Apy Ka’y vive em condições precárias na beira de uma estrada. Em 15 de setembro de 2013, no entanto, eles promoveram uma corajosa retomada da plantação de cana-de-açúcar que ocupa suas terras ancestrais.
Decidimos reocupar a parte de nossa terra tradicional onde tem uma mina d’água boa e restante da floresta, disse Damiana esta semana. Diante de ameaças de morte, perda de nossos parentes e de tanto sofrimento e dor, no dia 15 de setembro de 2013, pela quarta vez, decididos, voltamos a reocupar a nossa terra.
© Survival
Os Guarani procuram por um lugar revelado a eles por seus ancestrais, onde as pessoas vivem livres de dor e sofrimento: um lugar que eles chamam de a terra sem males.
Mas eles não a encontraram aqui, em um pedaço de terra vermelha onde enxames de moscas empestavam suas moradias abafadas e água poluída era coletada nas garrafas de plástico atiradas dos carros que passam.
© Rodrigo Baleia/Survival
A única fonte de água dos Guarani de Apy Ka’y era poluída por produtos químicos usados nas plantações de soja e cana-de-açúcar.
Quando chovia, bebíamos água suja como cachorros, diz Damiana.
© Paul Patrick Borhaug/Survival
O marido de Damiana e três dos seus filhos foram mortos atropelados na estrada.
Eles estão enterrados em suas terras ancestrais que agora são uma plantação de cana-de-açúcar protegida por cercas.
Damiana assume um grande risco ao entrar na área para rezar ao lado de seus túmulos.
© Paul Patrick Borhaug/Survival
Eles eram meus três guerreiros, fala Damiana sobre seus filhos mortos na estrada.
A localização de seus túmulos foi um fator decisivo na decisão de Damiana de empreender a retomada.
Nós decidimos retornar à terra onde três de nossas crianças estão enterradas, ela disse.
© Paul Patrick Borhaug/Survival
Em agosto de 2013, um incêndio destruiu o acampamento Apy Ka’y, forçando Damiana e sua comunidade a fugir e a deixar suas casas e posses para trás, destruídas pelo fogo.
Relatos indicam que o incêndio começou na plantação e usina de cana-de-açúcar São Fernando, que ocupa suas terras ancestrais. Não foi a primeira vez que chamas engoliram seu acampamento; em setembro de 2009 pistoleiros tocaram fogo nas casas e atacaram membros da comunidade.
Os Guarani agora dizem que o tom vermelho característico destas terras vem do sangue derramado pelo seu povo.
© Spensy Pimentel/Survival
A raiz do imenso sofrimento dos Guarani está na perda e destruição de suas terras.
Muitos entraram em profunda depressão. Estatísticas mostram que a, cada semana, em média um Guarani cometeu suicídio desde o início deste século. De acordo com o Ministério da Saúde, 56 indígenas Guarani cometeram suicídio em 2012 (é provável que o número real seja maior devido aos casos não reportados). A criança Guarani mais jovem que se suicidou, segundo os registros, tinha somente 9 anos.
Os Guarani estão se suicidando por falta da terra, disse um Guarani. A gente antigamente tinha liberdade, mas hoje em dia nós não temos mais liberdade. Então, por isso, os nossos jovens vivem pensando que eles não têm mais condições de viver. Eles se sentam e pensam muito, se perdem e se suicidam.
© Paul Patrick Borhaug/Survival
Nossas barracas, roupas, alimentos, panelas e colchões foram queimados! disse Damiana.
Perdemos tudo, mas não perdemos a nossa esperança de retornar à nossa terra ancestral.
© Paul Patrick Borhaug/Survival
A retomada tem sido a esperança e o consolo de Damiana: o objetivo que a manteve em pé nos anos de brutais expulsões, medo, humilhação, sub-nutrição, doenças e mortes de seus parentes.
É um ato perigoso; Guarani já foram mortos em outras retomadas e a presença assutadora de pistoleiros nas proximidades do seu barraco, em jipes, não a deixam esquecer do valor da terra no Brasil e do preço que se paga por suas ações. Os Guarani de Apy Ka’y já foram ameaçados de morte muitas vezes e dizem que homens já tentaram até envenenar sua água.
© Simon Rawles/Survival
Uma tênue linha de arame farpado separa as casas dos Guarani de Apy Ka’y da plantação de cana-de-açúcar que ocupa suas terras. Para os Guarani, há somente uma separação sutil entre o mundo externo da natureza e o mundo interior do ser humano.
Suas terras são o pilar de sua identidade: viver desconectado dela é como viver no purgatório.
Nós decidimos lutar e morrer por nossas terras, disse Damiana sobre a retomada.
© Paul Patrick Borhaug/Survival
A campanha da Survival International está pressionando as autoridades brasileiras a demarcar o território dos Guarani como uma questão de urgência.
Em 2012, a Survival convenceu a gigante do petróleo Shell a desistir de adquirir cana-de-açúcar provinda de terras roubadas dos Guarani e conseguiu convencer juízes a suspender uma ordem de despejo que forçaria os índios Guarani da comunidade de Laranjeira Nanderu a deixar suas terras.
Não é de surpreender que os Guarani estão resolvendo as coisas de seu próprio jeito, disse Stephen Corry, diretor da Survival International. Eles estão lutando pelas suas terras e precisam de apoio para não serem expulsos e atacados mais uma vez.
© Sarah Shenker/Survival
Somos refugiados em nosso próprio país.
Damiana Cavanha
© Fiona Watson/Survival