"Fomos feitos como a areia"

Molathwe Mokalake, um homem Bosquímano, no campo de reassentamento do Novo Chade, Botsuana. © Dominick Tyler

Os Bosquímanos são os povos indígenas do sul da África. Majoritariamente caçadores-coletores, eles têm vivido na região por mais de 70.000 anosOs povos Bosquímanos de hoje são geneticamente mais próximos dos antepassados do que qualquer outro grupo; no entanto, são também os povos mais vitimizados na história do sul da ÁfricaEm 1961, a Reserva do Kalahari Central (RKC) foi criada para proteger as terras ancestrais dos 5.000 indígenas Bosquímanos Gana, Gwi e Tsila.

Um Bosquímano que acaba de regressar à Reserva do Kalahari Central toca a areia da sua terra ancestral pela primeira vez em cinco anos. © Dominick Tyler
 No entanto, sua reserva, uma área maior que a Suíça (52000 km2) de planícies abertas, pastagens e rios, está no meio da mais rica área produtora de diamantes do mundo. Após a descoberta de diamantes no RKC nos anos 80, o governo do Botsuana expulsou à força os habitantes mais antigos do paísEntre 1997 e 2002, quase todos os Bosquímanos foram forçados a abandonar suas casas e foram levados para os campos de assentamento fora da reserva. Suas aldeias foram derrubadas, os poços de água que utilizavam destruído e sua água drenada na areia. O governo tentou acabar com seus direitos básicos: casa, comida e águaOs Bosquímanos levaram o governo de Botsuana ao tribunal. Em 2006, em uma vitória histórica para os povos indígenas de todo o mundo, eles conquistaram o direito de voltar para casa.

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O governo continuou a impedir os Bosquímanos de voltarem para casa, proibindo-os de terem acesso a um poço de água que fechou durante os despejosCom o apoio da Survival Internacional, os Bosquímanos recorreram de uma decisão do Supremo Tribunal de 2010 que aplicou a proibiçãoEm 27 de Janeiro de 2011, numa vitória para os povos Bosquímanos e para os direitos humanos em todo o mundo, o Tribunal de Botsuana anulou a sentença de 2010.

Em 2006, o aclamado fotojornalista Dominick Tyler passou um tempo no Novo Chade, em um dos campos de assentamento, e estava com um grupo de Bosquímanos quando voltaram para casa, para a RKC. Essas são suas fotografias.

Uma mulher Bosquímana em rua no Novo Chade, o campo de reassentamento do governo onde muitos Bosquímanos foram realojados. © Dominick Tyler
 Durante os despejos forçados, suas casas tradicionais foram derrubadas, suas escolas e postos de saúde fechados, o poço d’água que haviam utilizado, foi destruído e teve a água drenada para a areia. “Se eu fosse a um ministro e dissesse, ‘saia da sua terra’, ele pensaria que eu estava louco”, disse um Bosquímano. Mas foi isto que aconteceu com os povos que outrora viviam da Bacia do Zambeze até o Cabo. O governo do Botsuana afirma que os Bosquímanos precisam “deixar para trás” o que afirmam ser uma vida miserável, viver “entre animais”, para “alcançarem” o desenvolvimento do resto do país. Eles também argumentam que a presença dos Bosquímanos na reserva não é compatível com a preservação da vida selvagem. “Eles deveriam progredir da situação em que se encontram”, disse o Ministro de relações exteriores de Botsuana. “Todos nós estaríamos preocupados com qualquer povo que permanecesse no mato coexistindo com a flora e a fauna”. O ex-presidente do Botswana, Festus Mogae, perguntou: “Como você pode ter uma criatura da idade da pedra existindo na era dos computadores?”
Um casal de idosos Bosquímanos em seu jardim cercado no Novo Chade, o campo de reassentamento do governo onde muitos Bosquímanos foram realocados. © Dominick Tyler
 
Em três grandes operações, em 1997, 2002 e 2005, quase todos os Bosquímanos foram forçados a sair da RKC, o que violava a própria constituição de Botsuana. O governo tentou persuadi-los afirmando que o despejo era para o bem dos próprios Bosquímanos; que eles iriam se beneficiar socialmente e economicamente da mudança. A provisão de educação e serviços de saúde nos novos alojamentos foi enfatizada. “Como pode alguém argumentar que é melhor viver na selva com animais do que estar aqui no campo de assentamento?” perguntou James Kilo, um representante do governo. A verdade é que os “locais de realocação”, no entanto, são lugares de depressão, prostituição, onde a AIDS e o alcoolismo são abundantes. Eles são chamados de “lugares de morte” pelos Bosquímanos. A verdade é que arrancar pessoas à força de suas terras, casas, mitos, rituais e memórias é um caminho rápido para a aniquilação da auto-estima e para o colapso de toda uma sociedade. “O leão e eu somos irmãos, e eu estou confuso por ter que deixar este lugar e enquanto o leão pode ficar”, disse um líder Gwi.
Na distribuição mensal de alimentos no Novo Chade, os Bosquímanos, majoritariamente analfabetos, assinam um documento com a impressão digital antes de recolherem a comida. © Dominick Tyler
A vida nos campos de assentamento significa que os Bosquímanos raramente são capazes de ganhar o seu sustento da maneira como fizeram por milênios, caçando animais e coletando plantas. A caça é o que eles conhecem; é o seu sustento, a sua história e a sua identidade como povo. Agora, a caça foi negada para eles, e são frequentemente presos e espancados quando caçam. Um homem Bosquímano recebeu uma licença para entrar na reserva por apenas três dias; ele foi seguido por guardas armados por todos os lugares. Outros têm sido severamente torturados por guardas florestas por suspeita de caça. “Os Bosquímanos são um povo caçador”, disse Roy Sesana. “Eu cresci como um caçador. Todos os nossos meninos e homens eram caçadores”. Nos campos de assentamento, contudo, eles são dependentes das doações do governo. “Eu não quero esta vida”, diz uma mulher Bosquímana. “Primeiro nos fazem indigentes, tirando nosso modo de vida, depois dizem que não somos nada porque somos indigentes".
O primeiro grupo de Bosquímanos a tentar regressar à Reserva do Kalahari Central foi impedido guardas. Após duas horas de negociações, os oficiais não tiveram outra escolha senão respeitar a decisão do tribunal e deixá-los passar. © Dominick Tyler
O caso se tornou o mais longo e mais caro da história do país, apesar de ter iniciado por seus habitantes mais pobres. Foi uma vitória histórica em 2006. Os Bosquímanos ganharam o direito de regressar às suas terras, os juízes decidiram que o despejo feito pelo governo foi “ilegal e inconstitucional”. O primeiro grupo de Bosquímanos a deixar o Novo Chade, numa tentativa de regressar à RKC, foi impedido no portão da reserva pelos guardas florestais.
A madrugada começa em um assentamento Bosquímano dentro da Reserva do Kalahari Central, na primeira manhã após o retorno dos primeiros Bosquímanos desde o sucesso de seu recurso judicial. © Dominick Tyler
Bosquímanos em Molapo, um assentamento dentro da Reserva do Kalahari Central, cumprimentam familiares e amigos que acabam de regressar. © Dominick Tyler

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Crianças bebem água de um poço distante em Metsiamenong, Botsuana. Desde então, os Bosquímanos ganharam um recurso judicial para ter acesso à água em suas terras ancestrais. © Dominick Tyler
Uma das formas que o governo tentou impossibilitar a sua volta para casa foi proibindo-os de acessar um poço d’água dentro da reserva. Como os padrões de chuva são imprevisíveis no RKC, o poço é a sua principal fonte de água. Em junho de 2010, os Bosquímanos lançaram mais um litígio contra o governo, numa tentativa de obter acesso ao seu poço d’água. Na audiência judicial, o juiz decidiu que os Bosquímanos não tinham direito a acessar o poço d’água existente nas suas terras, nem a perfurar um novo, e que tinham “causado a si próprios qualquer desconforto que pudessem suportar”. No final de janeiro, porém, a decisão do juiz foi anulada por uma decisão unânime de cinco juízes do Tribunal de Apelação, que decidiram que negar aos Bosquímanos o acesso ao seu poço equivalia a um tratamento “degradante”, contrário à Constituição do país.
Uma mulher Bosquímana mastiga um pedaço de melão por sua água, na comunidade Metsiamenong, Botsuana. Os melões são cultivados pelos Bosquímanos e são uma fonte de água importante. © Dominick Tyler
 
Tradicionalmente, os Bosquímanos encontram água em depressões cheias de chuva na areia e em plantas como melões tsamma e raízes, técnicas aprendidas ao longo de milhares de anos de sobrevivência no deserto durante as estações secas, quando os poços d’água do Kalahari se transformaram em pó. “Aprenda o que a terra te diz”, diz o Bosquímano Roy Sesana. Quando as “depressões” estão vazias, a vida sem acesso a um poço num dos lugares mais secos da terra torna-se extremamente difícil. Em uma decisão histórica, os juízes do recurso decidiram que os Bosquímanos têm o direito não só de usar o seu antigo poço, mas também de construir novos. Eles também definiram que o governo deve pagar as despesas do tribunal.
Nuvens de tempestade se agrupam na Reserva do Kalahari Central, Botsuana. © Dominick Tyler
“Estamos esperando por isto há muito tempo”, disse um porta-voz dos Bosquímanos. “Como qualquer ser humano, precisamos de água para viver”. “Porque tenho de me mudar?” perguntou um Bosquímano. “Por que é que o governo do Botsuana está perseguindo os Bosquímanos?”. “Eu nasci neste lugar e estou aqui há muito tempo. Este é o meu direito de nascença: aqui, onde o corpo do meu pai descansa na areia”.

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